Os problemas no trabalho sucediam-se a uma velocidade sufocante. A falência da empresa estava à porta. A auto-estima afogava-se diariamente. Aliada a isto tudo, estava eu, pendurada no pescoço dele, a segunda metade da sua alma. A situação era tudo menos confortável e feliz. Passava os dias contando as horas para a sua chegada a casa, transpirado, irritado, vazio, artifical, precisando essencialmente de um banho na alma. Outrora uma pessoa tão doce, via-o agora como um fantasma sufocado, egocêntrico, fechado num egoísmo assustador, convicto de que era a vítima sofrida de um mundo que o mutilava em cada passo. Abrir a boca era sinónimo de um atentado à sua atitude. Qualquer palavra doce tinha logo a interpretação do mais acusativo possível. Era a hora de descarregar em cima de alguém, sendo que a preferência era alguém com quem a intimidade fosse estreita e sobretudo, alguém que o amasse. O alvo perfeito? Era eu, pois. E fui eu. Vi diariamente aquele homem lindo e encantador em tudo, transformar-se num ser que eu temia olhar de frente. O vazio preenchia os nossos dias, as nossas conversas, os nossos risos ocos de tudo. Pensar que, meses antes, perdia-me horas a fio olhando-o nos olhos, conhecendo-o por dentro, fazendo-o abrir as gavetas do pensamento e dos segredos mais bem guardados, num voto de confiança especial. Cumplicidade única. Pensar em tudo isso, tirava-me a lógica de qualquer quadro pintado diante dos meus olhos... Mas houve um dia, igual a tantos outros, em que o vi chegar, sorrindo, jogar-se no sofá, respirando o meu ar de mulher que ama por inteiro. Fiquei pateticamente feliz. Pensei que seria um dia especial para ambos. Nesse dia completava mais uma primavera, mas a data do meu aniversário ficara na memória oculta, distante e esquecida, sobretudo pela pouca importância e pouca conveniência do dia. Assim foi. Por mais triste que possa parecer, esperando que um mimo saisse do bolso mais pequeno do casaco transpirado, nem um beijo recebi.
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