terça-feira, julho 20, 2010

Dia D


Os problemas no trabalho sucediam-se a uma velocidade sufocante. A falência da empresa estava à porta. A auto-estima afogava-se diariamente. Aliada a isto tudo, estava eu, pendurada no pescoço dele, a segunda metade da sua alma. A situação era tudo menos confortável e feliz. Passava os dias contando as horas para a sua chegada a casa, transpirado, irritado, vazio, artifical, precisando essencialmente de um banho na alma. Outrora uma pessoa tão doce, via-o agora como um fantasma sufocado, egocêntrico, fechado num egoísmo assustador, convicto de que era a vítima sofrida de um mundo que o mutilava em cada passo. Abrir a boca era sinónimo de um atentado à sua atitude. Qualquer palavra doce tinha logo a interpretação do mais acusativo possível. Era a hora de descarregar em cima de alguém, sendo que a preferência era alguém com quem a intimidade fosse estreita e sobretudo, alguém que o amasse. O alvo perfeito? Era eu, pois. E fui eu. Vi diariamente aquele homem lindo e encantador em tudo, transformar-se num ser que eu temia olhar de frente. O vazio preenchia os nossos dias, as nossas conversas, os nossos risos ocos de tudo. Pensar que, meses antes, perdia-me horas a fio olhando-o nos olhos, conhecendo-o por dentro, fazendo-o abrir as gavetas do pensamento e dos segredos mais bem guardados, num voto de confiança especial. Cumplicidade única. Pensar em tudo isso, tirava-me a lógica de qualquer quadro pintado diante dos meus olhos... Mas houve um dia, igual a tantos outros, em que o vi chegar, sorrindo, jogar-se no sofá, respirando o meu ar de mulher que ama por inteiro. Fiquei pateticamente feliz. Pensei que seria um dia especial para ambos. Nesse dia completava mais uma  primavera, mas a data do meu aniversário ficara na memória oculta, distante e esquecida, sobretudo pela pouca importância e pouca conveniência do dia. Assim foi. Por mais triste que possa parecer, esperando que um mimo saisse do bolso mais pequeno do casaco transpirado, nem um beijo recebi.

segunda-feira, julho 19, 2010

Palavras


Perco-me frequentemente na sensualidade de uma palavra que é dita quase por instinto, cheia de expressão corporal e de odor, traduzindo emoção, quase que palpitando directamente das batidas que se sentem um pouco irregulares por tudo o que é poro. Sugo essa vontade selvagem de tocar e saborear cada sílaba que se faz acompanhar de um  gesto ou de um olhar fixo, expressivo, iluminado de sensações.
Não entendo que seja possível ignorar todos estes sinais corporais, bater a porta e fechar-se na concha escura anti-social da insensibilidade. Acredito que existem máscaras. Corações frios? Não creio. Este é o meu mundo cor-de-rosa e quente. Sabe-me bem. Cheira a vida. Deixem-me sonhar enquanto posso.

quinta-feira, julho 01, 2010

Gelo

Sei que, por vezes, torna-se aparentemente confortável ser um bloco de gelo, desafiando o calor dos sentimentos que ardem em chamas agitadas, autênticas, bem à nossa volta. Rígidos, sozinhos, procuramos o conforto numa almofada vazia de emoção, nostágica, fria como uma lápide, receando derreter. O gelo conserva-se assim. Ninguém percebe a recusa fria de um carinho oferecido, seja um mimo, um pequeno gesto, uma palavra de confiança, um beijo, um afago de amor modesto que interrompe a jornada dura, um sorriso que está sempre no rosto e que é apagado e solicitado para um outro dia e uma outra hora, como que programado, na vontade cruel de que isso seja realmente possível, num momento em que dê mais jeito. Os problemas diários da vida não implicam afastar quem nos mima, de forma natural, sem sufoco, sem cobrar, sem incomodar... Pelo contrário... Essa dedicação não é digna de indiferença. Uma vez jogado no lixo, o sentimento que ferve espezinhado, desprezado, humilhado e reduzido, deixa de ter algum fundamento. Arrefece. A página do livro vira-se assim num vazio silencioso, salpicada por pequenas gotas salgadas que transbordam semi-secas, magoadas, mumificadas, criando crostas ocas, incompreendidas. O tributo ao amor e à amizade fez-se da forma mais genuína. E o livro fechou-se.