sexta-feira, março 12, 2004

Perfume


Realmente o poder do odor exerce efeitos magníficos na nossa mente e, quando menos esperamos, estamos correndo atrás de um aroma familiar, viajando no tempo ou até se perdendo pelas vias deliciosas da imaginação. Se citasse aqui o fabuloso livro de Patrick Suskind, desviar-me-ia do tema.
O que aconteceu foi simples. Foi o desencadear de uma sensação de seda apetecível semelhante às anunciadas nos slogans mais banais de shampoos ("Seja você também um cabelo Pantene"). Não foi com Pantene que o lavei, mas com o usual kerastase que mima os meus caracois desde há muito ruivos. E o resultado final deixou-me radiante. Olhei-me no espelho e gostei. Incrível. A auto-crítica foi positiva, embora moderada. Inconscientemente, ao ler deitada na cama, mexia e remexia nos caracois macios e o perfume foi me envolvendo. Seria da lua? Seria do quarto vazio? Não sei... Fui à varanda. O vento assobiava no prédio assombrado em frente, em construção abandonada. A minha pequenina canina aconchegada na sua alcofa vermelha ergueu a cabeça e pediu mimos. Acarinhei-a e uma madeixa de cabelo encaracolada caiu-lhe sobre o focinho. Pensei que ela iria espirrar ou mexer-se e ri-me antecipadamente. Tal não aconteceu. O seu narizito pequenino mexia-se em movimentos compassados. Sorri para a pequenina, minha fiel companheira. Também ela sentiu esse perfume que parecia sair de mim e era agradável, confesso. Relembrei-me da minha afilhada que com menos de um ano, gatinhando, trepava por mim fora e ficava olhando o meu cabelo, mexendo nos meus caracóis, sem puxá-los (como fazem as cianças daquela idade), o que era deveras estranho. Devo ter uma arma nas mãos que no fundo nem me pertence, mas sim ao tempo. Uma arma que se desgasta com o passar dos anos. O certo é que eu, hoje, senti o poder desse deslizar encaracolado e perfumado que me cobria os ombros e me perturbava os sentidos mais lúcidos. O erotismo despoletou em mim com a vinda dos trinta e este processo é irreversível. Na verdade, até gosto dele, mas acarreta consequências, por vezes, menos positivas.
Acabei me lembrando de ti e do primeiro beijo que me deste. Afastando uma madeixa encaracolada, debruçado sobre meu rosto, com um sorriso tão lindo quanto a lua no céu cintilante e os teus olhos mais verdes do que nunca, emotivos, perguntaste delicadamente: "Posso?" Como uma menina assustada, inocente, ingénua e tímida, respondi num sussurro: "Podes".
E os nossos lábios tocaram-se suavemente, como uma gota de orvalho deslizando numa pétala de rosa e eu vivi o beijo mais lindo que recebi na vida. Tinhas esse perfume... Perfume de charme, de sensualidade, de homem maduro e de menino perdido, de cavalheiro delicado. Nos lábios tinhas o aroma e o gosto do desejo. A tua mão deslizou pelos meus cabelos e eu percebi então: o quadro era perfeito demais para durar além de um momento. Senti nesse beijo o medo de estar vivendo um sonho que pouco duraria e pude confirmá-lo, mais tarde, com um aperto no peito. Mais uma vez, esse perfume fora levado pelo vento. Ficara apenas a lembrança e o roçar suave de uns lábios doces que me falaram de amor no silêncio e me fizeram acreditar que a Felicidade, por vezes, existe. Julgo que é esse recordar de perfume que ficou em mim, nos meus caracois ruivos e que me deixam assim, ansiosa, tentada a perdoar-te e pedir-te perdão e dizer que te amo como nunca amei ninguém na vida.

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