sábado, dezembro 29, 2007

Entrar no ano novo a sorrir...

(Deixo-vos o meu modesto artigo de Opinião, publicado no D.N. há 4 anos atrás, mas no qual não mudaria actualmente uma única palavra... A mensagem prossegue...)
Na cozinha, o aroma a peru recheado invadia o meu cérebro de recordações. De olhos postos no forno, pensava na cirurgia complicadíssima à qual aquela ave tinha sido submetida e conseguia visualizar a autora do dito repasto, cozendo e tricotando o ventre do "bicho", após ter metido no seu interior um recheio digno dos deuses. Hum... Peru. Cheira a peru na cozinha. Num outro tabuleiro, vislumbrei a deliciosa carne de vinha-d’alhos e o apetitoso pãozinho embebido no molho. Ai, ai... Que regalo para os meus sentidos e para o apetite que avançava a passos largos na direcção do forno. Isso equivaleria, no entanto, a horas de ginásio, pedalando, pulando e fazendo exercícios de ginástica localizada repetidamente para desgastar as calorias extra, dignas do Natal.
Na sala, a algazarra de sempre. Uns falando mais alto que os outros. Alguns cantarolando. São vozes de crianças e de adultos, graves, agudas, esganiçadas e, para completar o quadro entusiástico, uma aventureira no piano, adivinhando dedo a dedo as notas de uma canção tradicional de Natal.
É dia de Festa. Sim, eu sei. Estou consciente que aqui se encontram os meus entes mais queridos, mesmo os que já não estão no nosso mundo do dia-a-dia. Hoje, aqui e agora, estão todos reunidos, como sempre acontece no Natal. Somos muitos, mas eu continuo sozinha na cozinha com o pensamento concentrado unicamente no gigantesco peru de pernas ligeiramente erguidas, parecendo fazer abdominais dentro do forno.No entanto, não era o estômago que reclamava o direito a uma dentada na carne suculenta.
Ao observá-lo, voei alto e fui até aos países de terceiro mundo, onde o Natal e o conceito de família muitas vezes não existem, porque não há condições para tal. Aí, as crianças com frio e fome, nem sabem o que é o calor de um forno exalando este irresistível perfume a comida que remonta à infância e só se sente de forma igual neste dia do ano. Era nessas crianças e adultos que eu pensava ao verificar a fartura exibida na cozinha e senti-me profundamente triste.
Há tantas ajudas humanitárias promovidas nestas alturas do ano e que pouco irão ajudar quem vive quase sem respirar ao longo do seu quotidiano, sem forças para viver e meios para subsistir, vendo os filhos e os seus familiares se esvaírem em dor, fome e mutilações de índole diversa. É justo que desfrutemos este dia junto de quem amamos. Não o condeno, logicamente. Pelo contrário, enalteço esse valor atribuído aos laços familiares que nos sustentam, como raízes biológicas e psicológicas também. Apenas sonho que este dia se repita com frequência ao longo do ano e em muitos outros lugares do nosso globo, sobretudo no coração dos Homens que nunca conheceram o espírito do Natal e que podem estar bem perto de nós, vagueando perdidos.
Ontem, saí de casa com um sorriso brilhante, rasgando o meu rosto, mas no regresso, trazia apenas uma angústia sufocante no peito. Momentos de reflexão como estes, fazem-nos partir de uma atitude passiva a uma acção mais directa, pequena ou grande (pouco importa), incidindo sobre os que mais precisam de viver o Natal respirando alegria.
Pelo caminho, cruzei com uma idosa pedindo esmola numa rua comercial do Funchal. Pouco depois, enquanto conduzia, vi um mendigo jogado sobre um passeio e um transeunte olhando-o com desprezo e repugna, fazendo um desvio enorme para não se sentir invadido por "bactérias" indesejáveis. Vi também uma família atravessando a estrada na direcção do Hospital, levando sacos de hipermercado. Relembrei-me da solidão natalícia acentuada nos hospitais, onde o frio das paredes e o cheiro a desinfectantes adivinhando soro e seringas tornam-se quase irrespiráveis, por mais esforço e sorrisos que esbocem as enfermeiras e os profissionais de saúde.
O Mundo é assim, desigual, tal como a vida. Somos todos tão diferentes, mas, no fundo, tão iguais e transparentes. A superficialidade e frieza calculistas são máscaras que se julgam modernas e dignas essencialmente de pessoas que ocupam lugares de chefia. Mera aparência. Por dentro, todos temos sentimentos, ou não passaríamos de meros "fósseis andantes" no estádio de "mortos-vivos". Não conheço nenhum "Frankenstein".
O meu sonho prossegue, mantendo os pés bem presos à terra que me viu nascer e crescer. Modestamente, nos gestos diários, continuo tentando levar o aroma e o calor do peru e das iguarias natalícias, da festa e das risadas, ao coração daqueles que desconhecem o valor do Natal.
Este ano, o Pai Natal falou comigo. Após longo diálogo fictício, vi-o brincar com a sua longa barba branca como a neve e sorrir, confiante e cúmplice. Nesse sorriso encontrei a resposta que buscava. Todos sabemos que o rumo do Novo Ano está nas nossas mãos. Se, todos juntos, soubermos cultivar autenticidade em torno de nós, pensando um pouco nos outros ao longo de todos os dias do ano, poderemos então conquistar os tais idílicos momentos felizes nas nossas vivências mais simples.
Feliz Natal! Comam o peru recheado, mas não briguem nem entrem em disputa pelo melhor vinho, pela qualidade do tempero, pela variedade de iguarias, pelo tamanho da mini-saia da Maria ou pelo modelo das botas da Joana. Comam o peru recheado, pensando que estão em família, junto de quem amam e que, no mundo, existem muitas outras famílias. Sozinhos, não somos nada nem ninguém. Sem a tua presença aqui, tu que lês estas palavras e pensas nelas, este texto não teria sentido algum. O mundo é feito de pessoas, todas elas com direito a viver. São frases que toda a gente profere, muitas vezes, sem pensar no seu conteúdo.
Sei que juntos poderemos fazer muito por um mundo melhor, começando por um sorriso, um gesto ou uma palavra de amor dirigida a um desconhecido que se cruza connosco numa passadeira, em plena avenida, com um brilho vazio e triste no olhar e um sorriso apagado. Não tenhamos receio de ajudá-lo a atravessar a rua, apenas porque o seu cheiro é diferente do nosso. Atravessemos nós também essa rua que pertence a todos e entremos no Ano Novo, com o coração a sorrir, conscientes que fizemos e faremos algo por um mundo repleto de dias de Natal.
Continua a cheirar a peru na cozinha, mas eu perdi a fome e fui para a sala, emocionada, abraçar os meus pais.

Realidades...

Para reflectir,

não só agora,

mas durante

todo o percurso

da nossa vida...

A imagem fala

por si.

A viagem do Pai do Natal...


Na rua, reinou um trovão que desenhou no céu uma espada de lua cintilante, após o seu ecoar pesado, como o de um gigante deambulando sobre as nuvens escuras. Era noite e o frio penetrava até ao mais íntimo dos sentimentos. Algo de especial parecia querer acontecer, timidamente e de forma subtil. Era quase impossível adivinhar as sombras misteriosas de um pensamento quase cego que tentava caminhar no escuro do beco, tropeçando em baldes de lixo e fazendo vir às janelas os vizinhos irritadiços. Até os gatos, dormitando nos jornais e nos restos de comida deixados ao acaso em sacos de hipermercado, enfartados, bem ceados, afastavam-se do cheiro a desconhecido e diferença que ele libertava das roupas escurecidas, da cor da sua alma, perdida ali, naquele submundo. Caminhava deixando atrás de si uma sombra, cada vez mais negra, mas avançava em direcção à luz, como na caverna de Platão, na esperança de um mundo superior. Acreditava nele e por isso nunca se deixava cair, nem mesmo quando tropeçava e escorregava nos resíduos apodrecidos. Parecia estar atravessando um bairro onde apenas residiam pessoas de um nível social elevado, com mesas bem postas e iguarias diversas, podendo usufruir do luxo de deitar sobras de comida fora, ainda dentro do prazo. Tudo isto, quem sabe, talvez, no intuito de fazer variar as ementas e evitar as refeições congeladas e aquecidas. No país onde nascera, era tudo bem diferente. Havia casas, janelas, neve, frio, luzes, gatos e lixo "verdadeiro", crianças, alegria, sons, música e movimento, risadas e brincadeiras, mas, infelizmente, havia fome também. Não sabia bem onde estava e de onde surgira aquele mundo meio sujo e escuro, onde até o lixo se exibia farto, diante da opulência das casas majestosas, debruçadas sobre becos e labirintos estranhos, intrigando-o. Tal como os gatos, ali, as pessoas pareciam nervosas, pesadas e resignadas a uma poltrona, diante da televisão. Não se ouviam risos nas ruas. As janelas reflectiam as imagens sucessivas exibidas na televisão, como que, na mudança insatisfeita e sistemática de canais, processada por um comando televisivo depositado, quase desfalecido, numas mãos tristes. Reinava o silêncio. Era ele o senhor da noite, perdido, mudo e sem cor. E o trovão voltou a soar angustiado no céu, parecendo rebentar o azul-escuro, quase negro, e desenhar um rosto desesperado nas nuvens. Foi então que viu chegar o seu trenó e as suas renas com sininhos e sorrisos. Suspirou aliviado. Pode finalmente abandonar aquele lugar frio e egoísta e voar até ao seu mundo, onde a sua roupa teria brilho e a cor vermelha do amor, onde seria chamado de Pai e esperado pelas crianças que, mais do que ninguém, respiravam esperançadas, o ar límpido do Natal.