sábado, janeiro 28, 2006

Imagina.

- Faz como eu.... Escreve e desabafa para o papel, os sentimentos que nunca tiveste e as histórias que nunca viveste.

- Mas pareces tu, Ana...

-Achas que sim? Partilhas a teoria de que também encontrei uma criança abandonada e adoptei-a. Achas que ganhei um Diário Íntimo de alguém que morreu? Achas que devoro chocolate?

Catarina calou-se. Sabia bem que eu era alérgica a chocolate e que estava longe de ser mãe.

- Mas...

O seu pensamento foi cortado pelo amontoado visível de ideias que explodiam em si.

Calou-se novamente. Dei-lhe um abraço apertado.

- Minha pequenina, estou bem. Catarina, as palavras estão vivas em mim. Alimento-me delas e vivo-as intensamente. Não tentes encontrar explicação para o que escrevo. Quero que sintas e se duvidares... é sinal que consegui o que queria: escrever de forma tão real, capaz de te confundir, despertando questões em ti, vivendo o meu texto. Esse, Catarina, é o verdadeiro objectivo de quem escreve...Fazer com que as suas palavras sejam engolidas por inteiro, que os olhos saltem de linha, ansiosos, sofregos, isolando-se do exterior, mesmo que passe junto de ti um autocarro, um carro de bombeiros, um grupo de turistas barulhentos e tu permaneças sentada, lendo, num mundo mágico que só tu conheces, agarrada ao texto que vais desvendando com curiosidade. Nem mesmo nas pessoas que escrevem o seu diário, o decalque existe, Catarina. De uma forma ou de outra, a imaginação acrescenta pedaços de história que nunca aconteceram. O prazer da escrita reside nisso.

Maria aproximou-se com um sorriso.

-Como se comportou ela, Ana?

-Lindamente como sempre. Está crescendo, a tua menina.

Catarina recebeu a mãe com um abraço e olhou directamente para mim, desafiando-me.

- Mas os sonhos, Ana, podem acontecer na vida real. Vais negar isso também?

Sorri.

A miúda sabia realmente como me deixar sem argumentos.

Não argumentei. Não podia fazê-lo. Por vários motivos.


sexta-feira, janeiro 13, 2006

Tempestade...

Ao folhear o Diário dela, uma das suas últimas confidências prendeu-me por completo. Deixo aqui um pequeno excerto:


"Não me esqueci de ti. Não poderia. Tenho vivido uma tempestade interior. São 5h24 da madrugada. Pela segunda noite não durmo. Estou vazia de sonhos e de ambições. Sinto-me perdida, sozinha e carente. Dispo a minha alma assim, diante de ti, talvez porque saiba que não me irás julgar. Considero-te meu amigo, pela tua presença hoje, neste meu espaço, onde sempre peço que fiques. Não meço a amizade pelo tempo de existência, mas pela sua qualidade. Perdida e cega na tempestade, andei por lá, à beira do precipício e sinto-me mergulhada numa tristeza sem limites... Não sei se sofri de mal de amor ou se estou com orgulho ferido. Não sou fácil. Tenho uma personalidade explosiva e defendo as minhas ideias. No entanto, reconheço que sei ouvir, sei ser tolerante, aceitar que erro e deixar-me crescer como pessoa. Isso ajuda-me. Essa humildade em reconhecer e tentar melhorar faz-me deixar as atitudes próprias da imaturidade. Mas as aparências iludem. Esta personalidade "iceberg" derrete como manteiga... Não fiques chocado. A ingenuidade, na velhice, ainda existe. Não tem idade. É tão fácil ser iludida, usada e enganada. Um dia, alguém a quem abri o meu coração, disse-me: "Estou demasiadamente frio para dizer que te amo". O contexto? Nem eu mesma sei qual foi... O efeito dessa afirmação, ficou-me para sempre no peito, na alma, na vida, trespassada por uma espada fria que me levou o último fio de felicidade. São raras as vezes que abro meu coração ao amor. Devoro a amizade sofregamente e entrego-me por completo. Chego a ter receio de amar, porque sempre sofro, perdida em sonhos que não existem. Embora saiba que a culpa nunca pertence a só uma das partes e que a tempestade não nasce do nada, começo a duvidar seriamente se não serei eu a única culpada desta inexistência triste que vivo secretamente, no meu cantinho, quando entro em casa e deparo-me, sozinha, diante das paredes silenciosas. Olho-me ao espelho...Não vejo nada disso, das palavras bonitas que me dizem. Sinto-me vazia e perdida. Vejo uma mera sombra reflectida que já nem luz tem. Não sou bonita. Já o fui, por dentro, como pessoa. Pouco importa se algo em mim desperta a atenção no sexo oposto. Transformei-me em sombra. Por dentro, amontoam-se nuvens carregadas de chuva. Nada tem interesse agora. Não sei porque ainda tento decifrar, por vezes, a sombra opaca que produzo. Do modo que me sinto, até parece que alguém morreu. Chego a pensar se terei sido eu e tenho medo. Sinto-me usada e abandonada, mas a minha vontade de não preocupar os outros é maior que tudo. Disfarço...disfarço...e disfarço... Sozinha, encolhida no meu esconderijo, dispo-me da alegria e dos mimos que tento dar aos que de mim precisam. As lágrimas sempre secam no desespero de acalmar um coração amigo. No entanto, a angústia ficou acumulada, presa e mais sofrida do que nunca. O meu poço de tristeza não tem fundo. Gerou-se uma tempestade sem limites que me suga tudo: o sangue e o ar que respiro. O futuro anda entrelaçado num céu escuro. Não vejo nada diante de mim. Sinto um aperto no peito gigante, perante essa escuridão que me cega e o abismo profundo que sussurra o meu nome, chamando por mim. Estou caindo na extinção. Quando acabo o meu trabalho, de coração cheio com os sorrisos recebidos, os mimos e a amizade, logo a felicidade desmaia e vejo apenas, diante de mim, uma sala vazia, isenta de vida, e onde fui feliz por momentos. Logo regresso ao meu silêncio e à solidão, mais vazia e nua do que nunca, despida de tudo, de vida e de querer. Desculpa o desabafo. As palavras estavam explodindo em mim. Vive a vida, amigo. Aproveita-a, ao máximo. Como diz Edson Marques, esse grande e sensato escritor que tanto me faz rir como me emociona profundamente: "Mude...mas comece devagar porque a direcção é mais importante que a velocidade (...) Só o que está morto não muda"... Quanto a mim, já não sinto espaço nem tempo para mudar, por isso temo já ter abraçado a morte e entregue meu último suspiro à tempestade que devastou todos os meus sonhos. Beijo no coração".

Não pude deixar de chorar quando li isto. Pensei no quanto éramos parecidas, embora de gerações tão díspares. Compreendi, mais uma vez o motivo de ter sido eu a escolhida para ficar com o seu pequeno Diário. A sua ausência, tão recente, embora ferida pela dor e pela saudade, fica docemente apaziguada nas palavras que escrevia todas os dias e que me entregou com um sorriso, envelhecido, mas terno, sempre com aquele ar de menina, impossível de esquecer. Recordo o olhar sereno que me dirigiu e as últimas palavras que ouvi: "Fica com ele, o meu Diário. Lê-o, aprende e cresce..."